Normalmente fivavamos até tarde diambulando na rua. Nos bancos de jardim, ou melhor do largo, porque na altura ainda não havia jardim, ou então de rua em rua matando o tempo. Seriam meia noite, uma da manhã, estavamos no largo principal (o Rossio), junto do local onde é hoje a Junta de Freguesia. Na altura, decorriam justamente as obras do edifício que em tempos foi escola primária. Na calada da noite, começamos a ouvir em fundo vozes que indicavam tratar-se de uma discussão. Sem nos mostrarmos, fomo-nos aproximando para assistirmos à cena. Era o Zé Pintassilgo e o Manel Polícia, numa enorme discussão, cada um, mais bêbado que o outro. De um dos lados existia um pequeno lago, que o povo chamava cascata. Do outro lado estavam as obra da junta, com um enrme monte de areia. A discussão estava acesa e os homens mal se tinham de pé e nós escondidos íamos acompanhando o espectáculo. às tantas, os dois homens passam das palavras aos actos e começam a empurrar-se, equanto chamavam nomes um ao outro. -Maneli.... - Zéi... Zéi, olha o aterro da areia... Maneli... tu sabes nadar , Maneli??? ( de um lada a areia, do outro o lago) Pegaram-se os dois à pancada, enquanto nós, meros espectadores, nos deliciavamos com a cena. O Manel Polícia, ofendidíssimo, por ter ido ao chão, começa a praguejar e dirige-se para casa. Quando volta, o Zé pintassilgo ainda estava sacudindo a roupa. Trazia um machado numa mão e uma pistola na outra. Na altura pensámos que aquilo ía acabar mal, mas ficámos quietos. - Zei, queres um tiro, ou uma machadada?? - Maneli,... tu sabes nadar Maneli. E enquanto se vão agredindo, o Polícia aponta a pistola ao outro, e foi aí que pensámos correr para evitar a tragédia. De pistola apontada: - Vá diz, queres um tiro ou uma machadada??? O Zé pintassilgo em frente à pistola, grita: - Vá mata-me, mata-me... E qual cena de cinema, como de câmara lenta se tratasse, o Polícia vai puxando o gatilho da pistola. Nós parados, sem respirar, tudo parado, não havia qualquer ruído, nem vento... quado se vê com uma nitidez terrivel, apesar de ser de noite, o disparo que acerta em cheio no Zé pintassigo. Houve-se o grito fatal, -É água, é água... Era uma pistola de água (de carnaval). Dessa noite para cá, ficou famosa a expressão: "Maneli,... olha o aterro da areia".
No seguimento da história anterior, veio-me à memória uma conversa passada na tasca de um dos intervenientes: a Taberna do "Ti Zéi".
Nos dias de feira, aquela aldeia atraía muitos visitantes quer de terras vizinhas quer de lugares distantes que ali se deslocavam para fazer negócio.
Durante a manhã decorria sempre a "feira do gado", localizada num extremo da aldeia mas relativamente perto da dita tasca. Ali se apresentavam os melhores exemplares da zona do gado vacum, cavalar, ovino, caprino e ... canino!... (é que só raramente o negócio não se concluia numa taberna, de onde resultava uma inevitável "cadela").
Foi na sequência de um destes negócios que o "Gama" (imponente representante da etnia cigana na região) e um "peleiro" (homem que viajava de terra em terra a comprar peles para curtir) oriundo da zona de Ourém/Leiria, se juntaram na tasca do "Ti Zéi" à volta de uns copos de tinto ("traçadinhos" para o peleiro que não queria ser enganado pelo cigano).
Ora o que se passava era que o "peleiro", de nome Jaquim, queria "impingir" uma mula "de serviço" ao Gama!!! Este não estava muito pelos ajustes em relação ao preço, argumentando que a mula era "Velha, coxa, cega,... enfim, que tinha todos os defeitos". O "Peleiro", sabendo que estava a lidar com um "expert" na matéria - e querendo esconder que a mula já tinha muitos quilómetros nas patas - chamou o Seca-Adegas, que estava ali ao lado a fazer juz ao nome, e pediu-lhe que atestasse sobre a qualidade da mula. (De notar que o velho Seca-Adegas tinha como meio de transporte um grande burro cinzento-claro "amestrado" que o levava sozinho para o monte à noite, após a habitual "Procissão das Capelinhas" do dono).
- Ti Seca - diz o Peleiro - a minha mula tá ou não tá impecável?
- Oh 'migo Jaquim, até se me seca a "graganta" ...
- Ti Zéi... avie aí um copo o' Ti Seca...
- Obrigadinho 'migo Jaquim, pois a su mula... a su mula... a qual? a nova ou a velha???
- São as duas novas, Ti Seca!!! é a mais escura que o amigo Gama tá interessado!
- Ah essa?!! - fazendo uma pausa para beber de uma só vez o tintinho
- Oiça 'migo Gama, garanto-lhe eu que sei disto hein, essa mula ... quem ma dera p'ra mim! Se ela soubesse o caminho de Cujancas, quem a comprava era eu. Essa meto as mãos no lume por ela, 'migo Gama. Na feira nã havia "ninhuma", ouviu bem?, "NINHUMA" que lhe chegasse aos calcanhares...é garantido!
- Então amigo Gama, que me diz? - pergunta o Peleiro todo inchado.
Ao que o Gama responde na sua voz pausada e cigana:
- Migo Jaquim, sabe "qantos" tipos de cabrões há???
... o peleiro e o Ti Seca ficaram boquiabertos com aquela pergunta e na expectativa...
- Há "trêis"!
- "Trêis"??? - interrogam os dois em simultâneo.
- Sim, trêis - e explicou - há os que são e nã sabem, os que sabem e nã "s'importem", e os "quêmados"!
- Os queimados? - duvida o Peleiro.
- Pois, migo Jaquim, os quêmados... sã aqueles que "metem as mãos no lume por elas"!...
... fez-se uma pausa silenciosa em toda a taberna...
... e todos, sem excepção, olharam pelo canto do olho para as próprias mãos...
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P'rá semana volto aqui p'ra contar outra das muitas histórias que se passaram à volta daquela taberna e, aproveito para convidar a quem visite este blog, a deixarem histórias curiosas do nosso Alentejo. Deixem um comentário com o vosso mail que oportunamente forneceremos o contacto para onde as enviar.
Até breve seus "quêmados.
Relativamente à herarança, devo dizer que que não precisas de te preocupar com o imposto. Vou dar-te uma pista metafórica. (disse metafórica sim senhor) Numa pacata aldeia do interior, dois taberneiros todos os dias se embebedavam com 10 tostões, para quem não se lembra, em moeda antiga era 1$. De manhã, o mais atrevido percorria os escassos 100 metros que separavam as duas tabernas, com os 10 totões na algibeira e pisava a soleira, tossindo e escarrando para o lado direito, para junto de um velho banco de madeira, que servia as tardes de conversa junto à porta da taberna. -Tão Zéi, bom dia. Será que hoje ainda chove? a terra dum cabrão não há meio de dar cava! (isto passava-se no tempo em que ainda chovia). -hum, é capaz! -Bom, seja como for, bota aí dois! O zéi enchia dois copos com vinho, que ambos emborcavam de seguida, com um AAAHH, no fim. O taberneiro "visitante", pegava nos 10 tostões e ... - Paga aí Zéi. - Pago está! O Zéi jogava os 10 tostões para um canto da gaveta do balcão de madeira, que fazia soar um chocalho, não fosse alguém em tempo de miséria, jogar mão ao alheio. Cerca de uma hora depois, o chocalho soava de novo. desta vez não para entrar dinheiro, mas sim para o Zéi tirar os mesmos 10 tostões e percorrer os tais 100 metros até à taberna concorrente. -Tão, eu não disse que chovia?! -Pois é, tá mau! -Bota aí dois. O ritual repetia-se. O Zéi pegava nos mesmos 10 tostões e... -Paga aí! -Pago está! E o outro jogava a moeda para uma lata de bolacha maria torrada, da marca Triunfo. Durante todo o dia, outra coisa não acontecia, senão este vai-vem em jeito de visita. Ficaram famosas as bebedeiras que ambos apanhavam, com apenas 10 tostões. Consta que ao fim de um bom par de anos de boa vizinhança se terão zangado, porque um deles terá decido aumentar os copos de vinho para 6 tostões. Foi tal a desavença, que chegam mesmo a vias de facto. Um deles ao dar em retirada, vai soltando injurias e chega mesmo a fazer um gesto obsceno ao dobrar da esquina. O outro, não está com meias medidas, pega num copo de três (o famoso e verdadeiro copo de três), e joga-lho com a certeza de lhe acertar. O cabrão do copo falha o alvo e vai acertar na lombêra da mula do Pardelha, que ali estava engatada à carroça. A magana da mula que era espantadiça que nem cornos, prega de salto e coice e desata a fugir em direcção da casa da ti Rosa Pintainha que andava a estender roupa. A carroça encalha no estendal e arrasta roupa arame e tudo. A Maria Rita do Galinha que estava à conversa com a Carolina do Camões, são surpreendidas, pelo arame do estendal e não conseguem evitar uma cambalhota. Valeu o Zé Coelho, para evitar uma tragédia, pois a carroça ía em direcção do galinheiro do ti Zé Mamão. Durante anos, os dois taberneiros não se falaram e cabrão do copo nunca mais se viu.
...as heranças, ai as heranças... Houve, em tempos, um conhecido meu que disse: "(...)A porra toda é que as dívidas também se herdam!"... Pois é, "As dívidas também se herdam."! Vem isto a propósito de um amigo me ter dito "no outro dia", que tinha lá uma coisa para mim que "ainda é herança tua" (minha, entenda-se...)... fiquei na dúvida... "herança??? minha??? - Só se alguém morreu sem eu saber... e se morreu e eu tenho direito a herança, era alguém chegado... e se era alguém chegado, eu já deveria saber!... mas não sei!, logo: algo de bom não é!!!! Queres ver que é alguma dívida?????" ...E depois fiquei a pensar nas heranças... nas "guerras" que se arranjam entre família por causa delas, nos impostos que se têm que pagar por herdar uma coisa que, por direito, é nossa, nas despesas que somos obrigados a fazer para "habilitar herdeiros", nos "amigos" que arranjas se "herdas" ou inimigos se (m)herdas... nas coisas boas e nas coisas más... enfim: até para herdar é preciso ter sorte! E, eu, sinceramente, acho que herdar algo dá muito trabalho e implica que alguém morra, por isso, aqui declaro a todos os familiares e amigos: "Se querem que eu fique com alguma coisa que vos pertença e acham que eu a mereço após a vossa morte, dêem-ma agora enquanto, tanto eu como vocês, estamos vivos (e podem ser vocês a pagar as despesas- eh eh eh...), porque depois... bom, depois não sabem se eu fico contente com a "herança"; não sabem se sou eu que herdo... não sabem NADA!!! e dão uma despesa do caraças.. Fiquem bem (e... não se esqueçam de mim no testamento)